Desinformação sobre obesidade atrasa em seis anos a busca por tratamento

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Glasgow (Escócia) — Em 1994, a identificação de um gene associado ao excesso de gordura em camundongos abriu caminho para se rediscutir um problema que afeta, hoje, 650 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Se uma variação genética favorecia o ganho de peso, o combate a esse problema não poderia se reduzir à velha fórmula “fechar a boca e malhar”. Desde então, foram localizados mais de 300 polimorfismos de nucleotídeo único — quando uma letra da sequência do DNA sofre alteração — relacionados ao índice de massa corporal (IMC) acima do considerado saudável.

Muitos genes hereditários interferem na sensação de saciedade, no resultado obtido pela prática de exercícios físicos ou na relação da circunferência abdômen/quadril, entre outros. De todas as variantes que predispõem a obesidade, a ciência constatou que até 85% estão ligadas ao sistema nervoso central. Descobertas sobre a genética e a fisiologia do excesso de peso, que também tem relação com alterações hormonais, fizeram sociedades médicas e a OMS definirem a obesidade como doença. A classificação, que tira do paciente a culpa por um problema não causado por ele, porém, ainda não foi incorporada na prática.

Um estudo publicado na revista especializada Diabetes, Obesity and Metabolism mostra que boa parte dos pacientes e dos profissionais da saúde não percebe o problema como doença crônica. Mesmo quando há essa compreensão, falta diálogo entre pessoas que vivem com obesidade e seus médicos. Os dados fazem parte do Action Io, pesquisa conduzida por Ian Caterson, professor da Universidade de Sydney, na Austrália, em 11 países dos cinco continentes.

O estudo, patrocinado e financiado pelo laboratório Novo Nordisk, contou com a participação de 14,5 mil pessoas com obesidade e 2,8 mil profissionais de saúde. O Brasil faria parte do levantamento, mas a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) não autorizou a realização do trabalho porque, como norma da farmacêutica, os respondentes recebem uma quantia simbólica correspondente a cerca de R$ 50. No país, o Ministério da Saúde proíbe qualquer tipo de remuneração para participação em pesquisas.

PRECONCEITO

O estudo revela que somente 68% das pessoas que vivem com obesidade a percebem como uma doença. Entre os profissionais de saúde, apesar das evidências científicas apresentadas nas últimas décadas, 12% não acreditam que essa é uma condição médica. Dos médicos e enfermeiros participantes, apenas 76% consideram que o excesso de peso tem impacto extremo sobre a saúde em geral, mesmo que numerosos estudos tenham mostrado uma relação entre o acúmulo de gordura corporal e diversos tipos de câncer, diabetes, doença coronariana e ovário policístico, entre outros. A OMS estima que 40 milhões de pessoas morrem anualmente por comorbidades decorrentes do excesso de peso.

“Precisamos educar médicos, enfermeiros, fisiologistas, nutricionistas e juntar forças para combater as barreiras que impedem o tratamento adequado de um dos desafios de saúde mais crônicos e complexos da nossa sociedade”, acredita Ian Caterson. Um dos principais obstáculos verificados pelo Action Io foi a dissonância no diálogo entre pacientes e profissionais de saúde. Enquanto os primeiros admitem que gostariam que seus médicos levantassem a questão do excesso de peso no consultório, esses acreditam que as pessoas que vivem com obesidade não querem discutir o problema e poderiam se sentir ofendidas. Não à toa, levam-se em média seis anos para indivíduos com IMC acima do saudável procurarem tratamento.

COMPAIXÃO

No caso de Joe Nadglowski, presidente da organização da sociedade civil Obesity Action Coalition, foram 13 anos até criar coragem para buscar ajuda médica. Na adolescência, ele enfrentou preconceito e abordagens grosseiras de profissionais da saúde, o que colaborou para adiar o tratamento. “Queremos uma conversa com compaixão, não sobre culpa ou vergonha. Ninguém tem obesidade porque quer”, diz Nadglowski. Hoje com IMC normal, ele reconhece que esse não é um problema agudo, mas crônico, que, assim como doenças como diabetes e hipertensão, exige acompanhamento para o resto da vida.

As intervenções terapêuticas são muitas e devem ser indicadas de acordo com cada caso, segundo os especialistas, que apostam em uma abordagem personalizada (“Não há uma obesidade, há várias obesidades”, diz Lee Kaplan, pesquisador do Hospital Geral de Massachusetts). Além de medicamentos, as intervenções disponíveis incluem cirurgia bariátrica, modificações comportamentais, programas de apoio comunitário, exercícios físicos que respeitem as especificidades de cada um, entre outras.

Para os próximos cinco anos, é esperado o lançamento comercial de uma molécula que age por meio de três alvos: os hormônio intestinais glucagon, que reduzem a fome e, em pessoa com obesidade,  é deficitário; o GLP-1, que aumenta a saciedade, e GIP triagonista, também responsável por diminuir a fome. A ação esperada é de controle do apetite e de queima de depósitos de gordura, com redução de até 30% do peso corporal.
 
REEDUCAÇÃO PROFISSIONAL

Um dos autores do estudo sobre a percepção da obesidade publicado na Diabetes, Obesity and Metabolism, o endocrinologista brasileiro Walmir Coutinho destaca que, mesmo entre os médicos que a reconhecem como uma doença, nem todos levam a condição a sério. “Quase 90% admitem que é uma doença, mas não agem como tal. Na hora de tratar, pesa o preconceito de que o paciente não faz porque não tem força de vontade”, critica.
“As razões que o paciente cita para não procurar ajuda são que ele já sabe tudo o que tem de fazer e que acha que a responsabilidade pelo tratamento é dele”, continua Coutinho. “Se é uma doença, por que não se age como tal? Porque, infelizmente, é uma doença que não se trata só com remédio. O tratamento também passa por mudança nos hábitos de vida e, por isso, fica o preconceito na cabeça do médico e até do paciente de que a responsabilidade é dele (do paciente). Se alguma coisa der errado, a culpa é dele.” Para o médico, a inclusão de mais horas de estudo sobre obesidade nas faculdades de medicina poderia ajudar a reduzir o preconceito.

Carly Hughes, pesquisadora de ciências da saúde do programa Scope, da Federação Mundial de Obesidade, também aposta em reeducar profissionais da área. “Assume-se que pessoas com obesidade são desmotivadas e glutonas, e precisamos quebrar esses preconceitos implícitos, modificando nossa educação”, diz. “Acho que não se explica adequadamente para o público a biologia e a fisiologia da doença, e que pessoas magras talvez sejam magras por terem a sorte de herdarem genes que predispõem a magreza.” Esse trabalho também tem de passar por formuladores de políticas públicas e governos. Ian Caterson, que conduziu o Action Io, diz que, enquanto a mensagem não for absorvida por burocratas, haverá resistência em incorporar novos tratamentos — que ainda são muito caros — nos serviços de saúde. 

Fonte: Correio Braziliense

 

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