Em 2016, os rins da minha mãe começaram a falhar – mais uma vez. Seu primeiro transplante após vários anos na lista de espera, havia vindo de um cadáver. Da segunda vez, no entanto, sua irmã mais nova estava preparada e disposta a ser a doadora.
Como uma mulher doando para um ente querido, minha tia se encaixava na descrição básica da maioria dos doadores de rim. As mulheres representam 60% dos doadores de rim dos Estados Unidos e outros países apresentam números parecidos. No Brasil, não há um número nacional sobre as distinções de gênero entre doadores.
No entanto, sabe-se que em vários lugares do mundo essa diferença de gênero está crescendo. Desde 2008, o número de doadores homens caiu em todos os estudos demográficos nos EUA. Mas a maioria das pessoas esperando por um transplante - 59% - são homens.
O desequilíbrio na questão das doações de rins - mais homens precisam enquanto mais mulheres doam – não significa apenas um fardo a mais para elas. Pode haver consequências para a saúde dos homens também.
Diferenças de tamanho
Há dados conflitantes sobre o efeito da incompatibilidade de gênero no sucesso de um transplante. Mas um estudo com mais de 230 mil doações de órgãos nos EUA entre 1998 e 2012 indica que os transplantes renais de mulheres para homens estão entre os que tinham a menor probabilidade de dar certo. Essa tendência acontece com outros órgãos também: homens que receberam um coração de uma mulher e não de um homem, por exemplo, tinham uma chance 15% maior de morrer nos 5 anos seguintes.
Uma razão pela qual o gênero pode ter um papel nisso é a diferença nas dimensões dos órgãos, diz Rolf Barth, chefe da Divisão de Transplantes do Centro Médico da Universidade de Maryland.
Ele diz que um rim pequeno não funciona muito bem para pessoas maiores, já que órgãos menores têm uma probabilidade menor de acompanhar as demandas de um corpo maior. Uma análise com mais de 115 mil receptores de rins, por exemplo, descobriu que o risco de fracasso era maior quando a diferença de peso entre doador e receptor superava os 30 kgs.
Mesmo que uma mulher e um homem tenham o mesmo peso, os órgãos das mulheres tendem a ser menores. Mas muitas vezes o único aspecto relacionado a tamanho levado em consideração é o peso – o que pode contribuir para o risco de descompasso de gênero.
Além de tamanho, outra questão é que os corpos de homens e mulheres têm antígenos diferentes. Novos avanços médicos indicam que isso está se tornando um problema menor, diz Barth. "Na era moderna, usamos imunoterapias de indução mais intensas", diz ele. "Essas diferenças sobre compatibilidade e gênero foram minimizadas".
Há outras desigualdades de gênero na doação de órgãos. Um estudo com 101 pacientes negros que moram em áreas urbanas apontou que mulheres em tratamento de diálise tinham uma probabilidade menor de serem avaliadas para transplante de rim do que os homens em diálise. Elas também tinham uma tendência menor a querer um transplante de rim, apesar de receber mais ofertas do que homens.
Enquanto isso, um estudo muito maior com mais de 700 mil pacientes encontrou uma disparidade estranha de gênero em termos de índice de massa corporal: enquanto mulheres com sobrepeso tinham uma tendência significativamente menor de receber transplantes do que seus colegas mais magros, os homens com sobrepeso tinham uma tendência maior a receber transplantes.
Não está claro ainda o que causa essas disparidades. Mas há algumas teorias mais embasadas sobre o motivo pelo qual mais mulheres doam órgãos que homens.
Uma razão é simples. Esposas geralmente são as primeiras a se voluntariar para doar um rim para um ente querido. E, enquanto as mulheres têm uma tendência maior a sofrer de doença crônica de rim, os homens têm uma tendência maior a serem tratados para fracasso renal em estágio terminal - o que significa que, entre casais heterossexuais, mais mulheres do que maridos se sentem compelidos a fazer a doação. Em um estudo com 631 doadores de rim na Suíça, por exemplo, 22% eram companheiras enquanto apenas 8% eram companheiros.
Mas isso não dá conta de todo o fenômeno. As mulheres também superam os homens na doação para filhos, irmãos ou outros membros da família.
Questão econômica
Outra razão pode ser econômica. Doadores precisam tirar várias semanas do trabalho para a cirurgia e a recuperação, e o sistema de saúde americano não tem nenhum mecanismo que torne esse sacrifício financeiramente neutro. Minha tia, que precisou deixar de trabalhar durante 4 semanas do seu processo de recuperação, estima que tenha perdido cerca de 10 mil dólares (38 mil reais).
Mesmo em países como a Suíça, onde a perda de renda é reembolsada, burocracias administrativas implicam em semanas de demora para receber o dinheiro. Os homens, que continuam sendo os principais responsáveis pelo sustento da casa, podem ter uma tendência menor a doar como resultado.
Isso fica mais pronunciado em famílias com renda mais baixa. Pesquisadores só agora começaram a examinar como a perda de renda está afetando as taxas de doação de rim. Mas nem todo mundo concorda que a disparidade ocorra porque as famílias dependam menos das mulheres para sua renda.
"As mulheres, independentemente de seu status de trabalho, são as cuidadoras da família, e elas veem o que os membros da família passam com a diálise", diz Cathy Klein-Glover, também do Centro Médico da Universidade de Maryland. "E só por causa desse papel, é mais provável que elas digam 'vou fazer algo e ser a solução desse problema'".
Como líder da equipe de transplantes, é dever de Klein-Glober avaliar potenciais doadores e determinar se são bons candidatos, com o apoio social certo para garantir uma recuperação bem-sucedida.
Em sua experiência, diz ela, as mulheres tendem a se ver como a solução para o problema mais do que os homens.
Autosacrifício
Em geral, as mulheres são mais socializadas para ver o cuidado com a família como uma extensão de seus deveres. Especialistas dizem que isso pode ser a principal causa dessa disparidade.
Isso está alinhado ao que antropólogos médicos descobriram quando conduziram um estudo sobre atitudes envolvidas nas doações de órgãos no Egito e no México. Ambas as culturas mostraram ter muita expectativa de que mães doassem órgãos aos seus filhos.
"Fazendo uma analogia entre dar à luz e doar um rim, os corpos das mães foram explicitamente vistos como a fonte de vida de onde bebês e órgãos podem ser extraídos", diz o estudo. "Tirar mais um órgão dessa mesma fonte foi interpretado como uma continuação orgânica dessa intimidade corporal e interdependência."
Aliás, muitas das doadoras mulheres que Klein-Glover entrevistou estavam dispostas a doar porque já passaram por um procedimento médico grande como o parto. Como resultado, diz ela, "elas acreditam no sistema médico. Às vezes elas me dizem 'em comparação ao que eu passei, isso não parece nem um pouco ruim'".
Mas há uma ironia aí: ter engravidado é mais um dos grandes fatores que complicam a doação de órgãos tanto para mulheres que querem doar quanto para as que precisam receber.
Um dos maiores desafios para um transplante bem-sucedido é ter certeza de que o sistema imunológico do doador não rejeite o órgão. Mas o sangue de uma mãe é exposto aos antígenos do seu feto - o que pode fazer com que a combinação com seu próprio sangue diminua.
Como resultado, alguns estudos indicam que a gravidez é o motivo pelo qual as mulheres podem ter uma dificuldade maior de achar uma compatibilidade com alguém em sua família. (Na minha própria família, tenho outra tia que não foi considerada tão ideal tanto para minha mãe porque ela tem dois filhos.)
Especialistas dizem esperar que no futuro existam mais atenção e mais pesquisas da comunidade médica para derrubar essas barreiras físicas e culturais na doação de órgãos.
Fonte: Portal G1