Covid-19: certezas e dilemas para o segundo ano de pandemia

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Tudo leva a crer que passaremos mais este ano convivendo com o coronavírus. Felizmente, em 2020, apesar de tanto sofrimento, aprendemos a enfrentar melhor o Sars-CoV-2 e, agora, há vacina no horizonte.Conversamos com especialistas para saber as principais projeções e desafios para 2021. Confira a seguir. 

1. Dilema: a pandemia vai melhorar ou não?

Está aí a pergunta de 1 trilhão de dólares. Como o comportamento das pessoas é muito impactante (e imprevisível) no curso da Covid-19, é difícil fazer projeções apuradas.  Mas, levando em conta que a vacinação em massa deve demorar em todo o Brasil e fatos já conhecidos, como o desrespeito a medidas de isolamento social e ao uso de máscaras, os especialistas não estão muito mais otimistas. 

“Estamos vendo os dados com atraso e preocupados, pois as vacinas viraram o foco da conversa, mas vai demorar para atingirmos uma cobertura suficiente para reduzir novos casos e mortes”, analisa o cientista cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19. Outro ponto de atenção: diferentemente de outros países, o Brasil não impôs restrições às celebrações de fim de ano, sempre tão calorosas por aqui. 

Em um cenário de aumento de casos acontecendo desde novembro, a festança tende a cair como uma luva para o vírus — e os episódios e suas consequências virão agora em janeiro, fevereiro… “Se as pessoas continuarem agindo como estão, o número de casos vai permanecer elevado”, afirma o epidemiologista Márcio Bittencourt, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). 

“Infelizmente, devemos ter um início de 2021 muito triste”, prevê o médico Leonardo Weissmann, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Está aí uma notícia difícil de dar a uma nação que já perdeu mais de 200 mil vidas. Façamos nossa parte! 

Óbitos por Covid-19 em 2021

227 mil mortes é o número que o Brasil pode atingir no fim de fevereiro — ou 230 mil, se as restrições afrouxarem.

524 mil mortes é o que os EUA podem alcançar no mesmo período — é o número 1 em fatalidades.

2,6 milhões de óbitos acumulados no mundo até lá se as medidas de contenção se mantiverem iguais.

As projeções são do Institute for Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), da Universidade de Washington. 

2. Certeza: vamos precisar usar máscaras

Elas se tornaram parte do nosso vestuário e isso vai seguir por um bom tempo, ao menos até que boa parte da população esteja vacinada e os casos tiverem, enfim, recuado. Na verdade, o ideal seria ampliar ainda mais o uso. “Vemos que ele não é feito ou incentivado de forma sistemática”, observa o médico Frederico Fernandes, presidente da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia. 

Para se ter ideia, um levantamento estima que o uso de máscaras pode ter prevenido 450 mil casos de Covid-19 só nos Estados Unidos. Outros estudos dizem que o risco de contrair a doença é 70% menor se o acessório estiver no rosto.

Mesmo depois de a epidemia arrefecer, é provável que o hábito permaneça. “Precisamos pensar na possibilidade de que as máscaras tenham vindo para ficar, especialmente para as pessoas com doenças respiratórias", aponta Weissmann. 

3. Certeza: o distanciamento social deve continuar

“Assim como o uso de máscaras, não poderemos abandonar logo o distanciamento físico”, sentencia o médico da SBI. Infelizmente, as ocasiões em que o o Sars-Cov-2 tende a se espalhar mais fácil são justamente as que mais nos parecem fazer falta: festas, jantares, bares e encontros sociais, onde falamos, nos abraçamos e tiramos a máscara para comer ou beber.

Se o ambiente for fechado, então, pior ainda. “Na vida real, vemos que esses são os cenários de maior risco”, confirma a infectologista Rosana Richtmann, do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo. Mesmo de máscara, não dá para se proteger totalmente do vírus em uma aglomeração. 

O distanciamento mínimo para evitar pegar o vírus de alguém infectado é de 1,5 metro. Mesmo assim, em um espirro, uma gotícula com vírus dentro pode voar até 8 metros em alguns segundos. 

4. Dilema: quando vai ter vacina no Brasil?

Até agora, o governo federal anunciou a compra de 100 milhões de doses da Coronavac, do Instituto Butantan e da Sinovac, e tem mais 100 milhões do acordo entre a Fiocruz e a vacina da AstraZeneca/Oxford, que já concluiu as etapas de estudo necessárias para solicitar a aprovação. Problemas na divulgação dos dados ameaçaram empacar a liberação dos dois produtos, mas ambos demonstraram eficácia foram aprovados no país. 

“Podemos ainda ter a da Pfizer, em quantidade limitada por conta da demora nas negociações”, explica a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin, nos Estados Unidos. Além da possibilidade de compra direta, existem mais 42 milhões de doses acordadas pelo Covax, consórcio da Organização Mundial da Saúde, mas só uma das vacinas do acordo já foi aprovada no mundo, a da Moderna.

A campanha de vacinação começou na segunda-feira (18), a grande questão agora é garantir a quantidade de doses necessária para todos os públicos-alvo contemplados no plano de imunização. O Ministério da Saúde, em seu plano, estima que a vacinação nos grupos prioritários deva terminar em julho. 

Mesmo que essa expectativa otimista seja cumprida, não dá para pensar em imunidade coletiva tão cedo. “Estimamos que no mínimo 70% da população precisa estar vacinada, mas não temos essa resposta definitiva ainda”, pontua a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). 

As vacinas diferem em eficácia — Coronavac com 50%, Pfizer, 95%, e AstraZeneca/Oxford com uma média de 70% — mas todas são muito bem-vindas e ajudarão a reduzir a taxa de transmissão da Covid-19. 

Embora a rapidez do desenvolvimento tenha sido outro ponto de dúvidas do público, dá para confiar tranquilamente nas vacinas. Esses modelos são estudados há décadas. Com o interesse, ganharam bilhões em investimento, e puderam investir em pessoal, além de aumentar a capacidade produtiva. Mas nenhuma etapa dos testes de segurança foi pulada. 

5. Dilema: vamos vacinar só alguns grupos?

Os idosos e portadores de doenças crônicas, em especial diabetes, hipertensão e obesidade, fazem parte do grupo de risco da Covid-19 e deverão ser vacinados primeiro. Eles foram incluídos (em quantidade razoável) nos estudos finais ao menos da Pfizer e da Moderna, ambas vacinas de RNA, que contêm a instrução para que a célula humana fabrique um pedacinho do vírus.

“Vimos eficácia nesses grupos também e um perfil de segurança bem semelhante ao dos voluntários saudáveis”, conta Denise. Mais estudos pós-vacinação deverão avaliar o sucesso da estratégia nessas pessoas. Crianças estão sendo incluídas agora nos testes. 

No plano de imunização do Ministério da Saúde, constam como prioridade os maiores de 60 anos, profissionais da área de saúde, indígenas, comunidades ribeirinhas, quilombolas, portadores de morbidades (como diabetes, hipertensão grave, doença renal, câncer, e obesidade grau III), trabalhadores da área de educação e transporte.

6. Certeza: a doença deixa sequelas

Os estudos são bem claros. Em um levantamento irlandês, até 50% dos infectados apresentava fadiga até dez semanas depois da fase aguda dos sintomas. Outras pesquisas mostram que até 30% dos internados com casos graves podem precisar de hemodiálise devido a falhas nos rins. E os abalos também chegam à mente. No HCor, hospital paulistano, até 15%  dos internados relataram ansiedade ou depressão em grau moderado 28 dias depois da alta. 

Logo no início da pandemia, os médicos começaram a notar que a Covid-19 não afetava só os pulmões, mas o corpo todo, e que a recuperação dos casos moderados e graves tendia a ser longa. Às vezes, a pessoa precisa ficar internada por semanas e até meses. Os impactos sistêmicos são grandes e podem ser duradouros. Um dos mais intrigantes é uma sarcopenia — perda de massa muscular que ameaça movimentação e autonomia — atípica. 

“É comum que infecções graves deixem sequelas como essa, mas estamos vendo um quadro totalmente diferente na Covid-19, um grau de comprometimento dos músculos que não pode ser explicado somente pelo tempo de internação”, diz a fisiatra Linamara Rizzo Battistella, da Rede de Reabilitação Lucy Montoro, que atende os pacientes tratados no Hospital das Clínicas de São Paulo. 

Dor, cansaço e maior risco de quedas são consequências dessa síndrome. Além disso, os pulmões tendem a ficar com cicatrizes, chamadas de fibroses, que só intensificam a fadiga. “Também parecem importantes os sintomas neuropsiquiátricos, como impactos na memória e no raciocínio e alterações de humor”, relata a infectologista Daniela Bergamasco, do HCor, em São Paulo. O que ainda não dá para dizer é se são sequelas mais permanentes ou sintomas prolongados. 

Está claro, porém, que a qualidade da assistência ao doente — mais recursos e atendimento multiprofissional — faz diferença. 

7. Dilema: teremos um tratamento eficaz?
Ainda não há nenhum medicamento que atue especificamente contra o vírus. E é provável que não tenhamos mesmo, assim como ocorre com o sarampo, a dengue  e tantas outras doenças virais. Não foi por falta de pesquisas, pois dezenas de milhares de pacientes foram avaliados em ensaios clínicos, mas todos os compostos submetidos a estudos controlados — que comparam uma droga com um placebo ou o tratamento-padrão — tiveram o mesmo desfecho.

 Mesmo assim, ainda se propagandeia o uso de fármacos como a ivermectina e a cloroquina e suplementos vitamínicos como tática para impedir a versão mais severa da doença. “É mais fácil acreditar em uma promessa milagrosa do que aceitar a dura realidade de que precisamos mudar nosso comportamento para reduzir o risco de contrair a doença”, afirma Fernandes. 

Até agora, o único remédio que realmente foi bem nos estudos foi a dexametasona, um anti-inflamatório da classe dos corticoides, mas somente em casos graves. “Nos casos leves, ela não teve nenhum benefício, e pode inclusive atrapalhar a resposta do organismo ao vírus”, esclarece o pneumologista. 

Já os antibióticos, como a azitromicina, só devem ser usados na suspeita de coinfecção por bactérias. É bom lembrar que até 80% das ocorrências de Covid-19 se resolvem sozinhas. Daí a falsa impressão Já os antibióticos, como a azitromicina, só devem ser usados na suspeita de coinfecção por bactérias. É bom lembrar que até 80% das ocorrências de Covid-19 se resolvem sozinhas. Daí a falsa impressão de que os medicamentos usados empiricamente funcionam. 

Qual tratamento funciona?

Antibióticos: negativo, só atua em infecções secundárias

Cloroquina: negativo

Corticoides: positivo para casos graves

Antivirais: negativo

Antiparasitários (como a ivermectina e a nitazoxanida): negativo 

8. Dilema: escolas devem ficar fechadas?

O Brasil é um dos países onde as crianças estão há mais tempo sem aula. Os pediatras alertam para os efeitos negativos para os alunos, mas não há consenso sobre a reabertura. “O retorno deve ser feito em condições ideais, com ajustes na infraestrutura, medidas como a redução do número de estudantes e quando a transmissão comunitária estiver controlada”, avalia o médico Marco Aurélio Sáfadi, presidente do Departamento Científico de Infectologia da SBP. 

O impasse é questionável por que há outros setores com maior risco de contaminação abertos. “É um contrassenso manter escolas fechadas com bares abertos”, dispara Rosana. 

9. Certeza: lavar as mãos é crucial

Pode apostar que sim! Bastam 20 segundos de contato com o álcool em gel a 70% ou água com sabão para o Sars-CoV-2 ser eliminado das mãos. A higienização deve ser feita antes e depois de tirar a máscara, ao entrar e sair dos lugares e em outras situações. Tudo indica que o costume veio para ficar, principalmente porque ajuda a reduzir o risco de contrair outras doenças infecciosas. 

O bacana é que muita gente adotou mesmo o hábito. Em inquérito feito durante a pandemia pela Fiocruz e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 97% dos mais de 6 mil entrevistados disseram higienizar as mãos com frequência quando estão fora de casa. Que bom, pois o coronavírus pode sobreviver por até 9 horas na pele. 

10. Dilema: devo me preocupar com superfícies?
Em 2021, veremos novas lâmpadas ultravioleta, túneis de desinfecção e outras engenhocas que eliminam o coronavírus. Isso porque se estima que ele possa passar até 7 dias ativo em superfícies como plástico, aço e látex. Mas o papel dessa sobrevivência na transmissão do agente é questionável — o contato com as gotículas pelo ar parece mais importante. 

Fora que, apesar de o patógeno resistir por um tempo em alguns objetos, o ideal é fazer a desinfecção tradicional com álcool e produtos de limpeza. “A Anvisa não recomenda a luz ultravioleta como única forma de eliminar o coronavírus, alegando não haver eficácia da técnica em ambientes realísticos”, explica Weissmann. 

O órgão também alerta para possíveis efeitos adversos agudos para os olhos e a pele. Por fim, eles podem passar uma falsa sensação de segurança e levar ao descuido com outras medidas, como as máscaras — e basta um infectado respirando no local para que o vírus esteja de volta. Falando em descuido, um estudo italiano mostrou que só 3% dos profissionais de saúde higieniza diariamente o celular, que que também pode ser reservatório para o Sars-Cov-2. 

11. Dilema: minha vida vai voltar ao normal?

Se tem uma coisa com a qual podemos concordar é que o conceito de normal já ficou para trás. Enquanto algumas coisas de fato mudaram e representaram avanços para a sociedade — telemedicina, teletrabalho e a rapidez do desenvolvimento da vacina, para citar os exemplos positivos —, outras pioraram, como a desigualdade social, a divulgação de mentiras e as dificuldades no acesso à saúde. 

O mundo entrou em 2021 ferido como se ele próprio estivesse infectado por um vírus mortal. Para recuperá-lo nos próximos meses, não poderemos baixar a guarda. “Só dá para pensar em algo próximo do normal quando a população estiver vacinada e a epidemia controlada a ponto de ser possível rastrear novos casos”, explica a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, uma das fundadoras da Rede Análise Covid, que se dedica a promover os incontáveis avanços da ciência nas redes sociais. 

Espera-se ainda que a pandemia sirva de alerta para as próximas. “A melhor tática de combate a epidemias é evitar que elas ocorram, e a forma como lidamos com o meio ambiente hoje propicia o aparecimento de vírus até então desconhecidos”, justifica. “Ficou claro como a saúde deve ser prioridade para os governos, até para dar conta da demanda extra sem desassistir as outras doenças”, avalia Fernando Torelly, CEO do HCor. 

Por fim, a preponderância do coletivo — me proteger para proteger o outro — também precisará ganhar popularidade agora e depois. 

Fonte: www.saude.abril.com.br

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